Tudo o que gostaria de te dizer, mas nada sai

Tantas memórias… Quando penso, “tantas memórias”, o que vejo? Eu a chegar a casa dos meus avós, embrulhada num cobertor, com as mãozitas de fora, ao colo de alguém, e vejo, o sorriso preocupado da minha avó, o sorriso derretido e encantado do meu avô. As primeiras palavras que me foram ditas:

- Tem mãos de pianista!

O meu avô, era tudo para mim, e eu, passei a ser tudo para ele. A vida lhe sorriu outra vez. “A minha menina!”

Para mim, era tudo o que fosse melhor, a melhor pêra, a melhor maçã, o melhor prato, o melhor talher, tudo quanto existisse, de tudo, o melhor seria para mim. Assim que a refeição terminava, vinha a fruta para a mesa, ele escolhia a melhor fruta que tinha no cesto, descascava-a com a sua navalha, que trazia sempre consigo no bolso da camisa, e sorrindo, com profunda ternura e amor incondicional, me entregava, e me olhava, enquanto comia deliciada, a minha frutinha.

De manhã, iamos à Chique de Belém, o avô bebia o cafezinho, e a neta, comia um queque. Ficávamos sentados sempre na mesma mesa, a que dava para ver a rua. O meu avô gostava de observar a vida que passava do outro lado da janela, os eléctricos que passavam apressados cheios de gente, os carros de um lado para o outro, as senhoras carregando os seus recados, os senhores, caminhando mais demoradamente que elas, com o jornal na mão, as crianças que corriam, os mais idosos apoiando-se na sua bengala, os cães que passavam apontando o narizinho na nossa direção, sentindo o aroma doce das iguarias apetecíveis que vinham do café, abanando a cauda com alegria e continuando o seu caminho aventureiro, pelo meio de tantas pernas de meninos e meninas, senhoras e senhores, avozinhas e avozinhos, por entre as ruas e ruelas de Belém. O avô, usava um pequeno bloco e uma esferográfica Parker no bolso da camisa, o peso da esferográfica fazia descair um pouco o bolso, fazendo-se notar o bloco de papel, na transparência do tecido. Enquanto bebia o café, o avô escrevia, em modo de poesia, o que via, o que sentia, o mundo descrito através dos seus olhos, das suas emoções, do seu amor por todos, e principalmente, do seu amor, pela música.

Os sons de Belém… passos apressados, vozes, conversas, azáfama, elétricos, autocarros, bozinadelas, carros, pessoas, muitas pessoas, para lá, para cá, muita gente! Cavalos, Guardas, palácio, correios, pastéis de Belém, o Sr. Mantas que tinha a loja cheia de fazendas, o Sr. Frazão da merceeira, a padaria, a cooperativa, os gaiatos pendurados nas traseiras dos elétricos, as crianças e os rebuçados, o calçado na calçada, o jardim…

Depois do café, o jardim das estátuas. Gostava de brincar ao pé das estátuas, era capaz de ficar horas em contemplação, lindas! O seu reflexo na água turva do lago, que tinham aos pés, mexido pelos pombos e pardais que por ali se refrescavam, por vezes, as penas, sem nunca se afundar, flutuavam, passeando lentamente, pelo rosto refletido da estátua, e novamente, o meu olhar voltava a mirar o rosto triste, da estátua sem braço, de olhos fixos no lago.

Brincava, todos me conheciam, era a netinha, a cara do pai, e o encanto do avô.

O avô só me convencia a voltar para casa, depois de me prometer um chupa, daqueles que se vendiam na padaria, de morango! Mas a avó Lourdes, assim que me via chegar de chupa na boca, no cimo da escada, zangada dizia: - Ó Manel, é hora do almoço! Depois a menina não come!

O avô, deixava-me à porta de casa, fazendo-me sinal para subir, voltando para a rua, para não ouvir a minha avó ralhar, que muito ralhava! E todos os dias era assim. Até ao dia, em que o avô, estava no chão, caído, a “dormir”.

Vieram e levaram-no, dormindo, desceu deitado pela estreita escada, entrou na ambulância, nunca mais voltou.

As nuvens, passaram a ser a minha casa, porque era a dele também. Fechei-me, sem som, olhando as nuvens, pela janela da casa de banho, era a janela da casa em que se conseguia ver melhor, as nuvens.

A avó, nunca mais sorriu. Chorava. Os canários, que eram do avô e que eu ajudava a cuidar, um amarelo e uma laranja, morreram, logo a seguir ao avô, o amarelo que era o macho, depois, a laranjinha, que era a menina.

Todos nas nuvens.

E as nuvens, ficaram escuras, e depois, veio o inverno da vida.

Tudo o que gostaria de te dizer, mas nada sai.

Aqui, nesta altura, decidis-te levar-me. Quem és tu? mãe?! Não, nunca foste. Não sabes ser.

Nada mais te direi, nem tão pouco falarei sobre ti. Porque nada sai.

Voltei para Belém. Para a avó Lourdes, que foi a minha Avó e Mãe. A única que conheci, a única que tive. Vivemos juntas, partilhando a nossa dor, a nossa saudade, o vazio, que nunca se preencheu. A música, parou.

As estátuas, não mais parei para as contemplar. Tinha o espelho, eu passei a ser, o que no lago via refletido, era eu, sempre fui eu…

Mensagem À Minha Neta

Minha prenda adorada, encanto dos avós, tens um rosto de fada e um sotaque na voz, que espanta, que encanta! Dando alegria entre nós. Que Deus te conserve assim, sempre bonita e airosa, como a rosa num jardim, para seres feliz enfim! Bonequinha buliçosa, fazes lembrar uma rosa, anjo celestial, minha neta afinal. Esta mensagem querida, que te envia o avozinho, para ti sempre amiguinho. És minha vida. Querida…

Manuel Lopes Móia

Maria Antonieta Campos

Olá! Sou a Maria Antonieta Campos, mãe de três, poetisa, produtora de conteúdos digitais. Em 2019 mudei-me com os meus filhos, para uma casa algures numa aldeia de Portugal. Desde então, passo muito tempo na cozinha, cozinhando e ouvindo música, despertando os meus sentidos para a vida doce e para o bem comer. Pacifista, amante da Natureza e de tudo aquilo que fazemos parte, encontro na vida do campo um modo slow de viver, aprendendo a ser autónoma e a ultrapassar a cada dia, as dificuldades que uma rapariga nascida e criada na cidade, naturalmente encontra ao chegar à aldeia. Livros e pão são a minha paixão, paz é o meu lema. O Contém Livros surgiu aqui, nesta casa em 2020 com uma etiqueta colada na testa, que ao fim e ao cabo, esta etiqueta, diz quase tudo sobre mim…

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E assim, voltamos ao princípio…