Sr. Sexta-feira 13
O meu pai, era um homem difícil. Levava-me à escola e não me deixava ficar, eu chorava tanto, que ele simplesmente não conseguia. Passava o dia com ele na loja de desporto onde trabalhava das 9h às 17h, de segunda a sábado, em Algés. Depois das 17h futebol, treino, todos os dias, aos domingos, jogo. Muitas vezes, eu ia com ele aos treinos, ficava no banco à espera e observava. O meu pai ganhava asas nos pés, o seu rosto iluminava-se, e dos seus olhos, grandes, com uma profundidade que nos trespassava a alma e nos impunha respeito, saía um brilho que apenas nele, e só nele, se via naquele campo. O meu pai era um gigante. Cabelo preto, olhos de um castanho muito escuro, alto, elegante, forte. Jogava futebol como vivia, por norma, os jogos com o adversário, acabavam sempre em confusão e sangue… - Pai! Pai! - assim gritava eu, enquanto o via jogar, mas ele nunca me ouvia. Ali ficava, sentada nos degraus frios em cimento que serviam de banco, à espera, aborrecida e contrariada. Acabava por adormecer, com a cabecita recostada de lado, sentindo o fresquinho do cimento na face. Sentia os olhos fechar lentamente, buscava ver o meu pai, por vezes ele espreitava, rápido, como se tivesse patins nos pés, logo voltava a desaparecer. Fechava os olhos, ouvia os sons dos homens que falavam, sem se importarem que uma rapariguinha jazia adormecida na plateia. Depois vinha a hora do duche nos balneários, e eu, não queria ficar sozinha, o campo era solitário sem ninguém, sombrio e assustador. Então, ficava à porta dos balnearios, em pé, à espera. - Não saias daqui, ouviste?! - o meu pai dizia firmemente. Eu saía, por vezes entrava e passava pelo meio daqueles homens todos, até encontrar o meu pai. Ele aparecia no meio de uma nuvem de vapor, pegava-me no braço e tentava levar-me lá para fora. - O que estás aqui a fazer? Não te disse para esperares lá fora? - dizia o meu pai, de forma firme e curta. Eu desatava a chorar, acabava por ficar dentro do balneário, sentada, a ver uma nuvem de vapor que saía da zona da porta aberta que dava para a zona dos duches. Sentia medo e queria ir-me embora, além disso, já se contava hora tardia, e eu, era só um rapariguinha da primária, que no dia seguinte tinha de se levantar cedo para ir para a escola. Cedo, não levantava, ir à escola, nem sempre… Depois de muito esperar, ou assim parecia, lá vinha o meu pai, fresquinho, cabelo molhado e de roupa lavada, impecávelmente bem engomada, e sempre, sempre bem vestido, usando as melhores marcas e com cores a condizer. Os outros, também eles ainda uns rapazes, iam passando por mim e dizendo piadas, passavam-me a mão pela cabeça - Cabelo preto como o teu pai! - Então, hoje vieste aos treinos? - Também queres jogar à bola? - Eu tirava bruscamente a mão e fazia uma cara de bicho do mato, assim me chamavam, “bicho do mato”, mas não só por ali, era uma espécie de expressão que ouvia com frequência. Tudo aquilo acabava e lá íamos para o carro, um volkswagen carocha bege, com duas listas pintadas, que se uniam em paralelo ao longo do carro, uma verde, outra vermelha, foi o meu pai que as pintou. Para além de trabalhar numa loja de desporto, ser futebolista, pai de uma menina bicho do mato, o meu pai era um artista, sim, um artista! Lembro-me de umas esculturas que ele fazia e pintava, eram tão espectaculares! Infelizmente, não fiquei com nenhuma, foram vendidas, ou deitadas fora, a família não apreciava essa faceta do meu pai, a minha mãe muito menos, para ela não passavam de lixo, como o futebol, e como tudo resto… Talvez tenha sobrado alguma, que os manos tenham guardado. O meu pai era muito criativo, desenhava também, tenho muitos livros da escola que eram dele, cheios de desenhos. O meu pai, o grande, aquele que todos gostavam, e com quem ninguém, queria ter problemas. Era ele que criava os problemas, principalmente na estrada.
Lá vamos nós, de regresso a casa no carocha. E lá ia eu, dormindo no banco de trás. Antes de fechar os olhos, a última imagem que via, o cabelo preto do meu pai, que se tornava luminoso com o passar dos faróis dos outros carros.
De manhã, era uma luta levantar o meu pai. Eu não me importava, quanto mais tarde ele se levanta-se, mais tarde eu chegava à escola, ou não chegava. Quando o meu pai finalmente se levantava, não dizia uma única palavra, e só eu, me atrevia a falar com ele, porque era bicho do mato e gostava de o espicaçar, ou talvez tivesse um especial interesse em desafiar o perigo… Esperava à porta, já vestida, com mochila às costas, braços cruzados. - Já estamos atrasados! Não quero ir à escola. Não vou. - ia eu dizendo entre outras coisas. O meu pai, não respondia, não olhava para mim, pegava no telefone, ligava para a loja. Dizia que eu tinha passado mal a noite, que estava doente, que tinha passado a noite em branco e que por isso tinha adormecido, que ia chegar atrasado. - Eu não estou doente! Não acordei de noite! Estás a mentir. O meu pai fazia-me um sinal para me calar e dizia: - Tu não compreendes.
Caminho acelerado até à escola. Dire Straits era o que se ouvia no leitor de cassetes do radio do carro, e eu, que não tinha feito os trabalhos de casa, ia fazendo-os pelo caminho, aos solavancos no banco de trás, sentada no chão do carocha, com as costas encostadas à parte de trás do banco do meu pai e com os cadernos em cima do banco traseiro. Lembro-me de olhar para a frente do carro e via as chuteiras vermelhas em miniatura penduradas no espelho retrovisor, que balançavam e que pareciam dançar ao som da musica Sultans of Swing, enquanto o meu pai abanava a cabeça de cabelo farto e preto, e movia os ombros a dançar, cantado em voz alta acompanhando no refrão: - We are the Sultans, we are the Sultans of Swing! - Olhando para mim pelo espelho, e acompanhando, na sua parte preferida: - You check out guitar George, he knowns all the chords - dando a mesma entoação que na música, olhando para mim como se me quisesse chamar a atenção para estas frases em particular. Sorriamos, e continuando caminho, ele perguntava: - Já fizeste os trabalhos?
Por aqui, dia 13 de outubro de 2023 o relógio marca as 7h07 da manhã, escrevo, ouço Sultans of Swing dos Dire Straits no YouTube e viajo até 1982, onde o meu pai está vivo e bem, e estamos os dois, naquele carocha, viajando em marcha acelarada, aos solavancos, atrasados para a escola e para o trabalho, ao som desta música, até Algés. Devo ainda partilhar, que neste momento, mal consigo escrever e ver as letras no ecrã, pois as lagrimas que me escorrem pela face, recordam-me, que estes momentos jamais voltarão, apenas resistirão, enquanto habitarem na minha memória, que guardo no arquivo das emoções, numa pasta no coração, com nome do meu pai.
Chegava à escola e assim que o portão se fechava, eu desatava a gritar, agarrada ao portão, para que o meu pai não me deixa-se ali ficar. - Pai!! Pai! Não me deixes aqui por favor. Pai! Paaaaai!!! - conseguia espreitar a rua, enquanto a funcionária da escola me tentava levar para dentro e eu me debatia para que me larga-se, mesmo assim, conseguia manter-me agarrada ao portão, empoleirada, e espreitando por cima, podia ver o carocha quase a chegar ao fim da rua, gritava ainda mais alto, e em desespero. De alguma forma, o meu pai devia ver-me pelo espelho retrovisor, e, voltava para trás. Abria o portão, segurava-me pela mão, enquanto eu, agarrada às pernas do meu pai, olhava com ar triunfante para a funcionária, que ralhava comigo e com o meu pai, como se também ele, fosse uma criança, e era. Saíamos os dois, caminhávamos de mão dada, eu olhava para cima e via o rosto do meu pai, que olhava de cabeça baixa fixando o chão, perdido nos seu pensamentos, nas suas frustrações, eu sorria-lhe feliz agradecendo por me ter resgatado, dando-lhe um leve aperto na mão, ele olhava para mim, sorria-mos os dois, começávamos a rir e ele dizia: - Não digas nada à tua mãe. - Caminhávamos de passo acelerado até ao nosso carocha e entrávamos no carro, divertidos e felizes, por estarmos juntos e por passarmos juntos o dia. Lá ia eu para a loja, aqui, o meu pai não parecia tão feliz, como parecia quando jogava à bola. Baixava mais vezes a cabeça, com olhar triste. Mas vendia ténis, com um entusiasmos que contagiava, principalmente os clientes, que compravam mais do que aquilo que inicialmente tinham pensado, o responsável da loja também ficava feliz, pois claro! As mulheres adoravam o meu pai, era bonito, novo, um rapaz ainda, (tinha sido pai aos 18 anos). Vestia-se bem e tinha um especial encanto, que a todos espantava. Mas quando estava zangado, a todos atormentava.
O meu pai, tinha um lado sombrio, como todos nós temos, mas nele, manifestava-se pela ira, o que quase sempre, levava à violência. Muitas vezes, na estrada enquanto conduzia, irritava-se. Mas afinal, todos nos irritamos, com as bestas que encontramos pelo caminho. Mas com o meu pai, era diferente. A agressão era uma possibilidade frequente.
Num desses dias, enquanto viajava no banco de trás, com o meu pai ao volante, depois de muito vociferar para um dos condutores que se lhe pôs na mira, o meu pai, parou o carro, saiu, olhou para mim, que estava sentada no chão do carro, como sempre, a fazer os trabalhos de casa, disse: -Não sais daí. Ouviste?! Deita a cabeça no banco e tapa os olhos. Não saias daí! - podia ver pelo olhar do meu pai, que ele se encontrava enraivecido, e que as coisas iam aquecer por ali. Espreitei pelo vidro traseiro, vi o meu pai bater violentamente no vidro do outro carro, gritava para que o condutor abri-se a porta e exigia-lhe que saí-se. Não saiu. Depois de uma discussão acesa, entre os dois, o meu pai partiu o vidro, abriu a porta e tratou-lhe da saúde. Quando voltava para o carro viu-me. Sentei-me no banco, onde antes estava de joelhos a ver tudo pelo vidro traseiro, esperei que ele entra-se. - Não te mandei ficares quieta?! - Em silencio continuámos o caminho até ao nosso destino.
Foram algumas as vezes, em que vi manifestações de violência no meu pai. Principalmente no campo, enquanto jogava futebol, na estrada, nas compras, na rua… comigo ele não era violento, mas por vezes um pouco bruto, principalmente mais tarde, quando já crescida, mas nunca com a minha mãe, nem com nenhuma outra mulher. O casamento durou 9 a 10 anos, não mais que isso. Lembro-me pouco da minha mãe nessa altura, algumas coisas, mas essa será outra história para contar. Passava a maior parte do tempo com a minha avó paterna e com o meu pai. O meu pai respeitava os mais velhos, era um homem bom, humilde, um pouco orgulhoso também, caridoso, protetor, gostava de se vestir bem, de mulheres e de futebol. Gostava do seu vicio, o casino, onde fez o favor de perder tudo o que tínhamos, incluindo a casa onde morávamos, ainda deixou dividas, que foi o que herdei seu. Mas, ainda assim, e depois de tanto, tanto que se passou, ele era o meu pai e era um homem bom, com coração grande com bondade, de tirar dele para dar aos outros.
Hoje, sexta-feira 13, é o seu dia. Não podia deixar de festejar, com ele, esteja onde estiver, o seu dia. Nasceu numa sexta-feira 13 e numa sexta-feira 13 morreu. Assim, como ele mesmo, tinha previsto em vida que aconteceria. Desde então, todas as sextas-feiras 13, festejo a passagem do meu pai por esta vida, no planeta terra, onde nos cruzamos por alguns anos, numa vida em que ele foi meu pai e eu sua filha rebelde, que nunca obedeceu, um bicho do mato, abelha mestra e mais tarde, sra. preceptora, assim me chamava. - Ó abelha mestra! Já cá faltava a abelha mestra a lançar bitaites! - Lá vem a Sra. dona preceptora. - Sim, senhora, sra. dona preceptora, seja feita a sua vontade!
Foste pai de um bicho do mato, Sr. Sexta-feira 13. Foste o meu pai mais que imperfeito, mas amei-te e sei que me amas-te também. Assim mo disseste, na última vez que falámos, antes de morreres.
- O pai ama-te. Nunca te esqueças disso, o pai ama-te muito. Ouviste? O pai ama-te muito.
E cá ficaram as dividas para contar histórias, cá ficaram as lembranças, as memórias. As emoções ainda em desordem, o apego ao que não volta mais, à minha vida entre Belém e Algés, os amigos que tive de deixar para trás, aos luxos e às vaidades, às jóias, aos restaurantes, marisqueiras e festanças, os convívios intermináveis, às férias no Algarve, à Ilha da Armora, aos passeios de barco, às noites de verão e aos invernos gelados. A tudo isto, sou forçada a dizer adeus. A ti também, pai. A ti, também te direi adeus, que de forma precoce, nos deixaste. Adeus Sr. Sexta-feira 13.
Para o meu pai.
Tua filha, abelha mestra.
P.s. - Desculpa não ter saído menino. Mas jamais pedirei perdão pela minha rebeldia.