Horizonte
Deste ponto em que me encontro, sem ponto de partida, sem objectivo de distância, contemplo o véu que me distancia, de tudo.
O que é estranho, é que me sinto mais eu. O que é difícil, é que não consigo sair de mim.
Procuro uma concha, mas não preciso dela, ela só me prende e estimula a vontade daqueles que bicam, em busca do que está dentro. Mesmo assim, caminho em direção ao mar, que se estende diante de mim. Sinto o bico que me busca a carne, sinto-o a cada toque que em breve me dilacerá. Mesmo assim, permaneço firme, rumo ao destino incerto que se apresenta lá ao longe, depois do horizonte. Agora estou cercada, por aqueles que com as suas quelas exibem a vontade de me cortar. Exibindo-as bem altas, não deixando dúvidas de que as vão usar. Unem esforços cegos, hipnotizados pelo sabor da carne, sem dar conta que ambos estão ali pelo mesmo objetivo, aquilo que os une.
Caminho, mesmo assim, porque o que desejo está para lá do horizonte. Por vezes paro e fico indefeso, então contemplo o céu e imploro que me escute.
Porque tenho de morrer para que outros saciem sua fome? Que mais queres de mim? Que implore? O que implorar? Já não me ajoelhei? Já não me sentiste chorar lágrimas de sal? Que mais queres? Como me vês de cima e deixas que me desfaçam? Tem coisas que não entendo em Ti. No entanto, tenho dias serenos que Te compreendo tudo. Essa justiça divina, que também vive naqueles que dilaceram. Deixar esta concha esburacada pela fome, parece inseguro, face à vastidão do que contemplo. Será que fico, por saber que sempre haverá quem me queira tirar um pedaço? Será que devo aprender a despedaçar antes de ser despedaçado? Estou à espera que um Ser maior, me carregue e me solte, lá mais à frente, já no mar, onde o horizonte será outro. No mar que nos afunda, numa queda sem chegada.
Somos nada. No entanto, somos tudo. Como uma mão em concha, que um pouco de mar tenta conter, leva à boca, para ali a reter por instantes, sente todo o universo salgado tocar-lhe no céu, bochecha, gargareja e cospe de volta o que é. E o horizonte visto daqui é mais alto e o céu parece estar abaixo de mim. Tu aí que me vez, dá-me a mão e ajuda-me a caminhar, deixa que eles se biquem um ao outro. Um levanta voo, o outro corre para a onda que lhe toca as pontas. Eu continuo, dilacerado, mas vivo. O mar, também sou eu.
E Tu, ó espelho da minha alma, que tens a dizer disto?
Por vezes penso que aqui me manténs apenas para que possa escrever. Não te importas que Te questione? Não Te importas que me zangue contigo? Não Te pareces importar. Pois sabe, que quando olho para o céu, Te busco, a Ti e aos outros, que me lembro que aí estão. Esta dormência que sinto nos dedos, tocam a pena que escreve. Tirei-a àquele que me bicou. Com ela escrevo, com o sangue que me escorre da ferida que mantenho aberta, para que dela me saiam palavras, para as fazer chegar a Ti.
Esta irreverência não Te esconde amor. Quero contê-lo em mim, porque não To quero dar, mas ele desprende-se e expande em direção a Ti e a todos toca, a todos sente.
O horizonte é leve, é só o braço esticar e ele se estende, é sempre mais além, aquém…
Maria